Costumo dizer que a minha vida oscila entre a de um monge e a de um nómada. Quando tenho projetos fotográficos para executar, estou na fase nómada; quando regresso a casa para mergulhar nas catacumbas do processamento dos raw e na organização de toda a informação que acompanha as imagens, encontro-me na fase monge.
Uma das poucas coisas em comum com estas duas fases é o silêncio. Com a abundância de redes sociais e meios eletrónicos para divulgar as nossas vidas ao mundo, pode pensar-se que o mais natural seria eu dedicar uns bons minutos por dia a relatar os avanços e percalços do meu trabalho de fotógrafo - pelo menos durante a mais aventureira e interessante fase nómada. Mas não. Lamento, mas não consigo. Ao fim de um dia de trabalho com vários quilos de equipamento às costas, resta-me apenas tempo e forças para descarregar as imagens, fazer uma triagem preliminar, tomar um duche rápido, comer qualquer coisa e regressar ao hotel... onde finalmente caio como um bloco de 10 toneladas arrancado a uma pedreira. Agora, em plena fase monge, consegui encontrar uns momentos para dar conta do que tenho andado a fazer (embora nem sempre me apeteça, que a vida de casa também tem os seus desafios).
Seja como for, acho que vale a pena partilhar. Se há coisa boa na minha profissão, é o facto de ela me fazer atravessar universos muito distintos e excitantes, mostrando-me toda a complexidade deste mundo prodigioso. É como montar um enorme puzzle, que à medida que juntamos peças nos vai dando uma imagem cada vez mais percetível. E já que o leitor não me pode acompanhar nestas descobertas, pelo menos fica também a conhecer um pouco do que aprendi.
Aqui fica, então, o relatório dos últimos meses (em capítulos, para não maçar).
Viana do Castelo
Foi-me pedido um trabalho do porto de Viana - um retrato das suas várias valências: pesqueira, comercial/mercante, recreativa e industrial.
É um verdadeiro privilégio poder visitar uma lota e assistir do lado de dentro à azáfama da chegada do peixe e posterior arrematação. Percebemos de imediato a estrutura familiar que suporta este tipo de pesca costeira, com o mestre aos comandos do barco e toda uma tripulação feita de filhos, sobrinhos, genros e amigos dos genros, enquanto em terra a mulher coordena as operações de descarga com a filha, as sobrinhas as noras e as amigas das noras: as operações no mar e em terra estão assim claramente divididas por género, com uma eficácia tão evidente quanto a coesão do grupo.
Aprende-se imenso sobre os diferentes peixes e somos testemunhas da mudança brusca das espécies capturadas, simplesmente porque de um dia para o outro se foram uns cardumes e apareceram outros – questões de ventos, correntes ou até da transparência da água. Tudo isto nos muda também a perspetiva, quando depois de dias a fotografar a lota nos deparamos com um arroz de polvo ao jantar: conhecemos as histórias por trás daquele prato.
Noutra altura, pude visitar os estaleiros navais, circundando os colossos metálicos que se erguem das docas secas (é muito interessante perceber como há tanto navio abaixo da linha de água).
Aqui tudo é grande, enorme, gigante, pesado, maciço; há faíscas a voar e marteladas a ecoar por todo o lado. Há tinta e ferrugem, soldas e óleo. É impressionante. É avassalador. E se isto não for suficiente, basta desafiar a nortada e subir a uma das muitas gruas para nos darmos conta da nossa insignificância neste cenário de titãs. Foi o que fiz dezenas de vezes... para mal das minhas pernas.
Continuando na faceta industrial do porto de Viana, na margem sul do Lima há uma fábrica de cabos de amarração para plataformas petrolíferas - imagine-se! Provavelmente, coisas que nem os próprios vianenses conhecem. Nesta unidade produzem umas “corditas” com uns meros 20 ou 30 cm de diâmetro, e os “carrinhos de linhas” usados para os enrolar são tão grandes que precisam de um enorme camião de transportes especiais para levar apenas uma destas bisarmas ao cais comercial - tal como acontece com as turbinas eólicas, que exigem um aparato rodoviário e policial parecido com o da visita de um chefe de estado.
Estar horas a fio ali no cais, junto aos navios de diferentes bandeiras (ou pavilhões, como agora posso dizer com toda a propriedade), a constatar informações sobre o peso das cargas e todas as histórias que elas trazem consigo, esmaga-nos a racionalidade. Uma simples bobine de papel, fabricada a poucos quilómetros deste sítio, pode pesar mais de 4 toneladas e chegar aos 8 km de extensão (um navio chega a carregar até 1300 destas unidades). A certa altura, não sei bem porquê, dei comigo a imaginar estender um destes rolos gigantes e a percorrer a “estrada” de papel resultante em bicicleta... só para poder ter uma ideia. É o tipo de coisas que me ocorre quando a luz é menos boa e pouso por momentos a câmara fotográfica. Ou então foi do Sol que apanhei na cabeça.
E agora tenho de recolher à minha cela monástica. No próximo post, falarei dos outros projetos em que estive a trabalhar recentemente.